Aquele verão ficara comprido demais. Não conseguia perceber a beleza e o encantamento das coisas que estavam à minha volta. Mamãe morrera. Tinha a sensação de que fora ontem. Doía muito a falta que eu sentia dela. Minha cabeça estava cheia de perguntas e eu não sabia todas as respostas.
“KADU, tinha 7 anos quando morava perto de Bengala[1], em uma terra onde plantavam inhame, com Ab[2] Nazir e Umm[3] Sale”.
Tudo ia bem até o governo começar a importunar Nazir para aderir a projetos políticos escusos. Ele não aceitou e começou uma perseguição terrível. Um dia papai chegou em casa esbravejando, chutando tudo que via pela frente. Até o dia em que ele foi morto. Enganaram a todos e disseram que tinha sido um acidente.
Sale pegou um emprego de faxina no centro da cidade. Ela se recuperou após algum tempo e casou com Kenui. Não gostei muito do padrasto mas não era violento e dava tudo o que nós precisávamos. Mudamos-nos então para um lugar melhor, com uma casa maior. Foi nesse lugar que nasceram meus outros três irmãos: Benazir, Pojo e Melina. Cada vez que mamãe engravidava mudava de emprego.
Certo dia ela voltou para casa com o rosto machucado. Havia apanhado no emprego. Kenui foi reclamar e quase foi morto. Salvo por pessoas que passavam por ali. Não conseguimos mais ficar naquele lugar e nos mudamos. Lá fomos nós em uma camionete, como se fôssemos animais soltos e partimos dali. Toda a família teve de se mudar . Perdemos tudo. Viajamos um dia inteiro e finalmente chegamos à cidade de Bonu[4].
Fomos morar de favor na casa de um parente afastado de meu padrasto. A situação não estava nada boa. O marido de mamãe ficou muito triste porque não conseguia emprego e começou a beber. Meus irmãos eram pequenos ainda e eu tinha 11 anos. Ele ficou doente. Sem dinheiro a família não podia pagar um tratamento e Kenui morreu de cirrose.
Meus Deus! Foi um choque para todo mundo. Mamãe ficou muito triste. Perdera dois maridos e não sabia mais o que fazer. Depois de alguns meses Umm arranjou um emprego em que dizia ser mais fácil ganhar dinheiro. Nos mudamos para um bairro mais afastado e numa casinha simples fomos morar. Cresci vendo ela sair à noite e voltar de madrugada. Mamãe não dizia por nada onde trabalhava, não podia. Era para botar comida na mesa e pagar meus estudos.
Meus avós, coitados, ficaram mais velhos e abatidos. Jadd[5] teve uma doença rara e ficou paraplégico. Jaddah[6] ficou então com toda a carga de trabalho para cuidar de meus irmãos, pelo menos enquanto eu estava na escola. E assim foi até eu completar 16 anos.
Certa noite Sale voltava para casa, tonta por ter bebido e foi atropelada na estrada. Não sobreviveu. Nós afundamos e ficamos à mercê da caridade dois vizinhos. Agora estou eu aqui tentando entender tudo o que aconteceu. Não consigo aceitar tanto sofrimento. Sinto saudades daqueles dias em que eu tinha sete anos.
- Vovó será que a vida vai um dia melhorar?
- Você tem três irmãos e nós ainda estamos todos juntos. Não fique assim querida, se Deus quiser tudo vai melhorar.
Não agüentei e chorei. Acredito que chorei a noite toda e por todos os anos de sofrimento, pois acordei com olhos inchados que mais pareciam duas mangas.
E não é que Deus olhou para nós e nos enviou uma coisa boa? Me ofereceram um cursinho de datilografia na escola onde eu estudava e aceitei. Esse tempo durou um ano e então arranjei um emprego de secretária.
Vovô começou a fazer artesanato esculpindo madeira que sobrava de uma fábrica do bairro. A pessoa que trazia os pedaços de madeira ficou tão compadecida da situação que resolveu nos ajudar e arrecadou doações e madeira pelo bairro todo. Conseguimos então trocar o telhado da casa, fazer uma área para lavar roupas, compramos uma máquina de lavar usada e fizemos um tanque de tijolos e cimento. Com meu emprego consegui juntar um pouco de dinheiro e comprei à prestação duas camas. Meus irmãos e eu dormíamos, até então, sobre caixas de engradados colocadas umas ao lado das outras e com acolchoados por cima.
Um dia conheci um rapaz muito bom. Ele era um dos sócios da firma onde eu trabalhava. Foi conhecer minha família e ficou encantado com a união e respeito com que todos se tratavam. A firma progrediu e nós casamos. Compramos um terreno perto do centro e iniciamos a construção de nossa casa.
Fomos morar todos juntos na casa nova. Tinha até uma rampa para a cadeira do vovô. Eu estava grávida de dois meses. Meus irmãos ficaram muito faceiros com a notícia. Eles estavam com oito, dez e onze anos. Os negócios cresceram, meus irmãos estavam em uma boa escola de bairro e no final do ano o bebê nasceu coroando de felicidade o natal em família.
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